sábado, 4 de maio de 2024

Nascimento de um romancista


Nascimento de um romancista

 

Quando lancei meu segundo livro, “Exílio” (1983), no Instituto Dona Escolástica Rosa, em Santos, Benilson Toniolo era meu aluno. Tinha 15 anos de idade e começou a sonhar com a literatura. Depois Benilson estudou História, com pós-graduação em Ciência Política e especialização em Realidade Latino-Americana, foi secretário de Cultura em Campos do Jordão, cidade que prima justamente pela valorização da Cultura, é presidente da Academia de Letras de Campos do Jordão e membro correspondente da Academia Bauruense de Letras. Publicou vários livros de poesia, contos, crônicas, memória, arte e biografia. É um poeta com voz própria, o que define um poeta. “Barra-dos-Meninos” é seu primeiro romance.

“Ainda está longe, a morada” é a abertura do romance. Apresenta-se o primeiro personagem sofredor desse lugarejo do Sergipe, lá no fim do mundo. É Cascalho, que depois se torna Raimundo, sofrendo como se carregasse o mundo nos ombros. Está apresentado o romance e o leitor não vai mais abandonar o narrador até que o livro se fecha. Os problemas daquela vida esquecida de Deus e dos homens continuarão. O leitor sente um peso no peito – o que será daqueles meninos? Porque, como bem diz o nome, Barra-dos-Meninos, é uma vila de meninos. Desde o mais velho, Liduíno, que lê muito e tem consciência dos problemas do lugar, até o último dos “meninos”, todos parecem de fato meninos – estamos na infância da humanidade, quando os meninos nunca irão crescer, assim como seu sofrimento nunca vai acabar.

O cego Irineu tem a poesia para viver, para ajudar o povo pobre da vila a viver. Declama os seus versos na feira e ganha uns cobres minguados – afinal, ninguém tem dinheiro – em pagamento. O pajé Moerekoara e sua tribo vivem à margem da rodovia federal, à margem da vida. Convivem pacificamente com os habitantes da vila. O pastor Divino, novo no lugar, implica com os índios, mas acaba cedendo, afinal eles são os legítimos donos daquela terra. As mulheres sobrevivem, com mais dificuldade. Violeta, que veio de longe para pesquisar caranguejos, é objeto de desejo dos homens, esses homens que parecem crianças. Estão aprendendo a sonhar, eles que nem sonhar sabiam.

Benilson Toniolo vive em Campos do Jordão, no alto da montanha, respirando entre os pinheiros e a arte, mas nasceu em Santos, de pai nordestino, e foi criado perto do mangue de Vicente de Carvalho, no Guarujá. Foi criado ouvindo histórias como essas que conta, convivendo com personagens semelhantes aos pobres infelizes de seu romance. Foi como se essas histórias tivessem ficado incubadas à espera de serem despertadas numa visita do autor a Aracaju. Era preciso contar essas histórias, sem enfeites, para mostrar “A vida, apenas”, como diz no título de um capítulo. “A vida apenas, sem mistificação”, disse Drummond.

 

José Carlos Brandão 

 

 

sábado, 16 de dezembro de 2023

Haibun do Matão


 

            O grupo O Zen do Haicai publicou uma antologia dos haicais do Dia dos Pais. A minha contribuição é um haibun, que mostro aqui porque gostei da apresentação. (Lembro que o haibun é um pequeno texto em prosa poética terminando por um haicai – um pequeno poema de origem japonesa que consta de 3 versos de 5/7/5 sílabas poéticas, que deve ter ainda um kigô, uma palavra referente a uma estação do ano).

                                                                                *

 

            Morei meus primeiros oito anos na fazenda Matão, em Dois Córregos, SP. Quando chovia os trovões ribombavam nos céu, mas antes do anúncio dos trovões vinha a voz do meu pai, um Arrooooi prolongado, prolongadíssimo. Dizíamos que era a voz de chamar a chuva, mas era a voz de anunciar a chuva. Talvez ordenasse quando a chuva devia vir.
             Escrevi num poema curto, citando S. João 1, 19, que diz que ninguém viu a face de Deus, que eu não precisava: eu ouvi a voz do meu pai. A voz do meu pai criou o mundo. Aquele pequenino grande mundo que conhecíamos foi criado pela voz do meu pai.

                                        O trovão ribomba.
                                Arroooi grita alto o meu pai
                                         na volta da roça.